Deficientes e o Mundo Gamer – Entrevista com NoHands e Patrícia Côrtes
A inclusão é um assunto absolutamente importante e oportuno em todos os âmbitos de nossa vida e pensando nisso trouxemos uma entrevista com dois representantes dessa inclusão nos games: o querido streamer Neto Trindade, conhecido como NoHands e nossa grande amiga Patrícia Côrtes. De forma sensível e verdadeira, eles vieram trazer seus pontos de vista quanto a inclusão no e-sports.
MdE: Qual a maior dificuldade enfrentada, ao longo dos anos, no mundo dos jogos?
Patrícia: Acho que a maior dificuldade que já enfrentei foi das pessoas acreditarem que eu podia jogar bem sendo mulher e cadeirante. A maioria das pessoas tende a duvidar da nossa capacidade por conta de um estereótipo: meninas não foram feitas pra jogar e cadeirantes são coitadinhos.
NoHands: Pessoalmente, minha maior dificuldade foi o meu próprio preconceito contra a minha capacidade atual. Eu sou muito perfeccionista, então, acabo comparando bastante minha produtividade de antes do acidente com a de agora e quando percebo que estou fazendo alguma coisa com alguma dificuldade maior ou que eu considere está muito lento, já vejo como problema. Fora isso, a dificuldade maior é a falta tanto de equipamentos de acessibilidade quanto de profissionais que conheçam porque a tecnologia já tem a oferecer.
MdE: Em algum momento tiveram a sensação de não fazer parte ou de não se encaixarem no ambiente gamer?
Patrícia: Sim. Em geral eu sou a “diferentona” dos eventos e comunidades. Acho que sempre fui a única pessoa com deficiência no meio de uma galera mais “padrãozinho”, o que me fez levantar questionamentos se aquele era realmente meu lugar. A falta de espaço para perguntas comuns e para quem está começando aliada a falta de representatividade. (mas começou a mudar com a Taverna das Divas).
NoHands: Essa sensação de não pertencer a lugar nenhum acaba passando pela cabeça com uma certa regularidade. Apesar de tentar sempre estar de bom humor durante as lives, como deficiente, tem dias bons e dias ruins… Antes de voltar a jogar Diablo, fiquei com muito medo de que a comunidade fosse me rechaçar porque não consigo fazer algumas coisas triviais na mesma velocidade do que os demais. Mas, a minha surpresa foi que, na verdade, encontrei pessoas afim até te ajudar. Isso é uma coisa da qual não posso reclamar em nenhum jogo da Blizzard, a comunidade. É claro que não é perfeita, nenhum grupo de pessoas é, mas é uma das mais acolhedoras que eu já vi desde que comecei a conhecer esse mundo. Depois de começar as lives, tive contato com a comunidade de Hearthstone e isso foi a melhor coisa que podia ter acontecido. No joguinho de cartas, apesar das frustrações de ainda não conseguir os resultados almejados, tenho a satisfação de me sentir completamente normal tanto enquanto o jogo quanto interagindo com a comunidade.
MdE: Sentem que houve algum tipo de evolução afim de tornar os jogos mais acessíveis? E quanto a acessibilidade nos eventos deste tipo?
Patrícia: Aos poucos acho que tem mudado sim. Já há controles de Xbox, por exemplo, específicos para quem tem dificuldades mais graves de movimentação. Os lugares de eventos ainda precisam melhorar, mas tem sido mais fácil que eles tenham rampas, banheiros e outras facilidades.
NoHands: No mundo virtual, principalmente em países onde a tecnologia assistiva chega efetivamente a quem precisa, muitos deficientes já são destaque no mundo dos jogos, das Artes e dos negócios. No mundo dos jogos, especificamente, existe um movimento muito grande a respeito da acessibilidade. Ainda existe a cultura de que colocar opções para facilitar que algumas pessoas consigam ter acesso a esse conteúdo é, de certa forma, “estragar” a experiência do jogo. Essa ideia não era muito contestada até que estatísticas começaram a surgir por causa dos jogos que começaram a implementar esse tipo de mudança e elas são cada vez mais positivas.
MdE: Na opinião de vocês, quais atitudes beneficiariam a comunidade gamer com alguma deficiência para que pudessem, por exemplo, estar dentro do cenário competitivo e poder disputar junto com os demais competidores?
Patrícia: A comunidade gamer precisa se acostumar com diferentes primeiro. Por isso, a gente precisa torna-la mais inclusiva. Grupos que mantenham a saúde na conversa, a liberdade de falar sem virar chacota, de ser mulher e não ser assediada, de ser uma pessoa com deficiência e não ser diminuída. Por isso, grupos de minorias são tão importantes. Nos fortalecem para ocupar espaços no mundão lá fora. Em eventos presenciais, acho que quem tem dificuldades de locomoção enfrenta problemas parecidos: consigo entrar? Tem rampa ou escada? E se tiver que subir em algum palco? E se precisar ir ao banheiro, tem cabine maior? Com essas perguntas respondidas positivamente, a gente só precisa se preocupar em jogar.
NoHands: Aqui no Brasil, os deficientes ainda precisam descobrir a tecnologia assistiva. Essa vai ser uma briga longa e vai envolver uma briga com o Estado também. Tecnologias assistivas, por lei, devem ter acesso facilitado para chegar a quem precisa, ou seja, deve estar disponível para quem pode comprar e deve ser financiada para quem não pode. Aqui nós não temos nenhum dos dois. Quanto à comunidade, o que cada um pode fazer para melhorar o ambiente para todos, é combater o comportamento tóxico que algumas pessoas insistem em ter. São pessoas assim que fazem com que quem é diferente acabe se afastando do jogo. A comunidade precisa, como já vi algumas vezes, se juntar para não deixar que essas pessoas e seus preconceitos tomem conta.
MdE: Um campeonato unicamente voltado a esse público, assim como ocorre com as paraolimpíadas, seria uma ideia interessante?
Patrícia: Sim, com certeza. Representatividade importa sim. Incentivar pessoas com deficiência a competir mostra para outras, que talvez tenham medo e vergonha, que é possível sim. Depois que adquirir a segurança de competir em campeonatos reservados e menores, podemos nos arriscar a ir para os que são abertos para todos.
NoHands: No caso dos e-sports, acho completamente desnecessária qualquer divisão. É um ambiente que iguala as oportunidades. Não importa ser homem, mulher, baixo, alto… Nada! Você só precisa conseguir acionar os controles. No HS, dada a simplicidade do uso do mouse, você poderia estar jogando com uma pessoa que consegue mexer apenas os olhos sem nunca imaginar que uma pessoa diferente de você está do outro lado do Tabuleiro.
MdE: Quanto aos personagens dos games em geral: o quão se sentem representados? Do que sentem falta?
Patrícia: Me sinto pouco representada. São poucos os personagens em qualquer jogo que sejam deficientes e, menos ainda aqueles que são deficientes e heróis.
NoHands: Deficiência é muito difícil de ser retratada nos jogos. Os personagens, em geral, não podem ter muitas limitações físicas ou mentais para que os elementos de ação sejam críveis. Acredito, entretanto, que jogos muitos bons podem ser feitos a partir de uma mecânica limitante do personagem principal. Como tantos outros grupos na nossa sociedade, com certeza não me vejo representado, mas acredito que esse ainda é um problema menor do que os motivos que levam simples diferenças étnicas, de gênero ou orientação sexual a não serem retratadas como na realidade.
MdE: O que esperam de grandes empresas, como a Blizzard, sobre a pauta absolutamente importante quanto a dos jogadores com deficiência no geral?
Patrícia: Acho que eles podem dar mais espaço a quem cria conteúdo de forma saudável, incentivar pessoas com diferentes lugares de fala a aparecerem mais e serem ainda mais rígidos com quem é tóxico.
NoHands: A Blizzard já é uma empresa que tem uma certa preocupação com recursos de acessibilidade. Recentemente, tive oportunidade de jogar um pouco de Warcraft e fiquei impressionado com algumas opções que eles têm para facilitar o acesso. Para você ter uma ideia, joguei HS a primeira vez logo que apareceu no battle.net, nem lembro se já estava lançado ou ainda no Beta aberto, mas nunca tive um único problema em jogar seja com adaptação da câmera ou com controle especial.
MdE: Quais considerações finais vocês querem deixar sobre esse assunto?
Patrícia: Acho importante lembrar aqui que as pessoas com deficiência não são nem super heroínas intocáveis nem coitadas que vão ficar sempre de canto. Nós somos pessoas e a deficiência é só uma das coisas que temos. Ficamos felizes, tristes, saímos, temos amigos, jogamos, nos relacionamos, bebemos, nos divertimos, como qualquer outro ser humano.
NoHands: Como disse antes, as empresas já começaram a se tocar que nós somos um grande mercado ainda, então, com certeza melhorias serão feitas. O que os deficientes precisam fazer é que essas empresas entendam que não somos consumidores tanto quanto qualquer um, mas não são meia dúzia de opções dentro de um menu que vão resolver todo o problema da acessibilidade. Eles vão precisar pesquisar, desenvolver e isso é caro.
“Incluir significa promover e reconhecer o potencial inerente a todo ser humano em sua maior expressão: a diferença.”